Breve guia de sobrevivência religiosa

Por Ricardo Gondim
Suspeite de quem consegue exibir ares de piedade. Quanto mais afetada uma espiritualidade, maiores chances de ser falsa. Alguns aprendem a arquear as sobrancelhas para baixo como jeito de expressar elevada pureza; esses são perigosíssimos. Prefira os mais soltos, os menos requintados, os pouco cientes de suas virtudes. Gente desarmada é melhor companhia que circunspectos sisudos; eles se arrastam pela vida com chumbo nos pés, e puxam para baixo todos os que se aproximam deles.

Evite sentar na roda de quem exige exatidão semântica até na hora da conversa fiada. Nada mais intolerável do que conviver com quem adora corrigir as virgulas. Se alguém diz, vou à igreja, ele dispara: “a igreja somos nós, não um prédio”. Se confessa, ando desanimado, ele engatilha um versículo: “mas os que esperam no Senhor renovam as suas forças”. Chatos religiosos são os piores.

Apure, rigorosamente, todo relato de milagre. Escolha ser cético a simplório. A verdade não teme análise, questionamento, suspeita. Indague também pelas motivações. Confira os fatos, mas queira também saber os porquês por detrás dos relatórios sobre grandes eventos. Dúvida faz bem à fé. Os fantásticos geralmente mentem. Exageros, prodígios fenomenais e números evangelásticos, em sua esmagadora maioria, se prestam a robustecer os músculos financeiros de algum narcisista. Toda a pretensão messiânica depende de hipérboles. Igreja ou agência missionária que não se contenta com o serviço despretensioso deve ser mantida sob grossas lentes. A correria por elogio, a busca por admiração e o esforço por alcançar os primeiros lugares merecem desdém.

Nunca hesite: mentes sórdidas se escondem sob o manto de um rigor moralista. Quem passa muito tempo se exasperando contra os pecados da carne, não se engane, é escravo da lascívia. E faz tempo. Rigidez puritana não abranda o fogo da cupidez. Só o acirra. As taras mais grotescas – sadismo, estupro, pedofilia – dependem de ambientes austeros e probos. Os que conseguem viver uma sexualidade lúdica adoecem menos. Lei não tem valor algum contra uma libido adoecida.

Faça qualquer coisa – fuja, esconda-se, dê o fora, encontre um escape – para evitar os tapetes azuis do poder. Se for nomeado síndico, presidente de honra da quermesse ou venerando líder da igreja, considere: tais perigos são avassaladores. O poder se insinua aos poucos. Portanto, abra mão de ostentar título em cartão de visita, ou no perfil das redes sociais. Placa de bronze, acrílico, papelão, diploma e medalha, não passam de confetes. Tais bobagens viram lixo na quarta-feira de cinzas da existência. Brigue para não ser tratado com deferência artificial. Caminhe para longe das armadilhas dos bajuladores. Além de toscas, elas escondem punhais.

Desenvolva uma espiritualidade não exibida. Evite tocar trombeta sobre seus predicados. Sejam outros os lábios que te exaltam. Não creia na publicidade que você patrocinar. Não hesite em reconhecer seus tropeções e seja econômico em alardear suas virtudes. Corra da companhia dos pernósticos, eles adoram se gabar sobre os galardões que fingem ser donos. Prefira a discrição.

Desconfie de quem atira pedra com facilidade. Viva longe dos que procuram mostrar-se inoxidáveis. Esses dissimulados nunca vacilam na hora de sacrificar. Basta enxergarem alguma vantagem e lhe entregarão “ao deus dos severos castigos“. Quando parece conveniente, os mais venerandos não piscam duas vezes em defender os rigores da lei. Aliás, todo castismo contém algum mau-caratismo. Corra de quem se ufana dono de nervos de nylon. Rejeite a todo custo sentar na roda dos puríssimos.

Cuidado para nunca oferecer as costas ao chicote do demagogo. Ele jamais soletra misericórdia. Seu prazer, com traços mórbidos, consiste em expor. E depois que fere, gosta de contemplar agonias. Esse é o jeito do santarrões se purgarem. Sem compaixão, fazem tudo para lhe arrastar para a lama em que vivem. Nunca se exponha a quem se enxerga como zelador da sala do trono de Deus. Eles acendem fogueiras com lenha verde. Não hesitam um segundo em expor e arruinar – sempre em nome da santidade, claro. Lembre-se: no meio de gente assim, o juízo triunfa sobre a misericórdia.

Proteja as costas. Jamais esqueça: Jesus foi traído por religiosos. Seja prudente e arisco como as serpentes. Lobos devoradores tentam passar por ovelhas cordiais. Não fale sobre a sua interioridade sem antes certificar-se de que está entre seus pouquíssimos amigos – companheiros de ministério e traidores se misturam (lembre-se de Judas). Quanto mais austero e probo o grupo, mais chance dele já estar manipulado por algum inescrupuloso. Insisto, caso precise abrir a interioridade, certifique-se: o outro consta entre os amigos que você pode contar nos dedos da mão? Não se exponha diante de quem coloca a instituição, a teologia, ou a reputação denominacional, antes da vida. Melhor abrir o coração, de joelhos, com a porta do quarto trancada. Converse a sós com Deus. Ainda assim, muito cuidado: as paredes também ouvem.

Fique na companhia dos vulneráveis, dos pecadores, dos que se mostram agradecidos pela vida. Religiosos, sepulcros caiados, são sorvedouros da espontaneidade, da vida, da alegria. Opte por ambientes simples, menos protocolares. Em mesas pudicas, sobram preconceito, não-me-toques e dondoquices. Cante sem medo – desafinar faz parte. Dance sem receio de pisar os cadarços. Não se impressione com gritos. O cenho franzido da gerontocracia eclesiástica não passa de inveja. Beba seu vinho com singeleza ao lado de gente querida. Brinque mais. E guarde sempre essa verdade: Deus gosta de nos ver felizes.

Soli Deo Gloria

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